IMAGINÁRIO EM PERPÉTUA CRIAÇÃO

Zé Ramalho e Beira-Mar

paisagens abertas, desertos medonhos

Eduardo Berlim

1/8/20253 min read

sea water falling into rocky hole at the beach
sea water falling into rocky hole at the beach

José Ramalho Neto, mais conhecido como Zé Ramalho, é um cantor, compositor e músico brasileiro conhecido por transitar entre os gêneros de um sertanejo “raiz” e a MPB. Muitas de suas músicas trazem um cunho esotérico de uma espiritualidade sincrética e muito sobre isso pode ser encontrado no livro de Henri Koliver intitulado “Zé Ramalho: O Poeta dos Abismos” (ed. Madras).

Nesta canção (que é uma das minhas favoritas do compositor paraibano), há uma estranha simbologia sobre caminhos que cruzam as profundezas de algo que parece tão antigo quanto abismal. Se realmente existe uma conexão entre as correntes de pensamento que cruzam Yesod, é certo que Zé cruzou essas fronteiras e teve vislumbres de horizontes muito distantes nesta canção.

Além, muito além onde quero chegar, caindo na noite me lanço no mundo. Além do limite do vale profundo que sempre começa na beira do mar”.

Como estudante de Qabbalah, este trecho da música me chama muita atenção. De forma curiosa, parece-me que ouvimos o lamento da queda de uma alma que vê sua fagulha partir dos profundos oceanos netúnicos de Chokmah e caindo através do Véu do Abismo diretamente para o mundo encarnado. As partes seguintes da música caminham por um universo inimaginável nas trevas e luzes dos sonhos dos homens e seu inconsciente oceânico; uma metáfora das águas internas que também nos arremedam aos mitológicos deuses do mar.

Bem, existem variantes interpretações sobre esta música que vão nos atentar desde as questões entre a humanidade e a natureza ou o desvirtuamento tecnológico no qual nos encontramos, mas é nas palavras de Charles Resende que encontro a maior coerência sobre este mesmo trecho da música, quando ele diz:

A consciência em termos de atenção dirigida a um fim, de vontade, só pode ir aonde quer chegar. Para ir além, a consciência tem que ceder e deixar a atenção livre para perceber o que ocorre, aceitando o que vier. Então a “noite desce”, o inconsciente se apresenta, e “eu me lanço no mundo”. É um estado equivalente ao hipnagógico (entorpecimento que antecede o sono) no sentido de que ocorrem imagens sem controle consciente”.

Mas qual é o “limite do vale profundo”? “Vale” é uma “depressão alongada situada no sopé de um monte ou entre elevações topográficas como colinas, montanhas” ou “terreno baixo e mais ou menos plano, à margem de um rio ou ribeirão; várzea” (HOUAISS, 2009). Como esta estrofe fala da beira do mar, esse vale pode se referir ao terreno mais ou menos plano que margeia o mar, entre este e uma serra, por exemplo. “Além do limite do vale profundo” parece indicar a praia, pois esta “sempre começa na beira do mar”. A praia também é chamada “beira-mar” (HOUAISS, 2009), que é o título da música. E com “vale profundo” o cantor provavelmente quer expressar mais uma representação da terra enquanto oposta ao mar, a qual vai se encontrar com este na praia. Porém, o autor parece falar de tudo, menos da praia concreta. Ao longo da letra da canção ele descreve uma série de imagens e as associa entre si indicando algo que está além do que é expresso. Faz uso, portanto, de símbolos (JUNG, 2001)”.

Na beira do mar ocorre o encontro deste com a terra. Devido às alusões anteriores a opostos (mundo de sol/noite-oceano, aurora/noite, olho/engano, vale profundo/mar), há uma nítida sugestão de que, pelo menos no contexto desta canção, o par terra/mar também constitui opostos. Coisas curiosas ocorrem nessa região onde o mar toca a terra”.