IMAGINÁRIO EM PERPÉTUA CRIAÇÃO
Um breve trecho de uma aula a ser gravada
e é sobre Tarot
Eduardo Berlim
7/19/20254 min read


“Ele fez a letra Lamed o Rei sobre o intercurso sexual e ela ligou uma coroa. Combinando-as, formou Libra no Universo, Tishrei no Ano e a vesícula biliar na Alma, macho e fêmea”.
Esse trecho, presente no Sefer Yetzirah, capítulo 5, versículo 9, pela tradução do professor Rafael Daher, temos a primeira pista da correlação entre o arcano da Justiça e sua letra hebraica correspondente: Lamed, uma das letras que forma a palavra Melech, que significa Rei, está ligada à Coroa, está ligada ao signo do equilíbrio que é Libra.
A Justiça é um arcano bastante complicado de se compreender à primeira vista. Isto ocorre porque nós partimos da premissa de que um ajustamento pode ser realizado pela parte a ser ajustada, mas esta é uma clara inverdade: quem ajusta aqui é o mundo, não o indivíduo. Imagine que algum tipo de distorção ocorreu em um ambiente e que agora este ambiente precisa se readequar, como um labirinto que se redefine após uma tentativa, algo que pode parecer uma cena de ‘Maze Runner’ ou de ‘A Origem’: essa é a ideia por trás do arcano da Justiça, ele é esse reequilibrar, esse “redesenho” do mundo para que tudo retorne ao lugar em que deveria estar.
Lawrence Kushner cita no seu livro ‘The Book of Letters’, que o Rabi Yose (que eu imagino que seja o Rabbi Yose ben Halafa) compara Lamed a um ‘vigia numa torre de observação, pronto para dar o alarme de perigo’. Isso nos faz retornar ao Sefer Yetzirah e a correlação de Lamed com o signo de Libra. Pense por um instante nesta tarefa do vigia: ele não apenas observa, mas julga e pondera o que deve ou não ser comunicado. Em termos humanos, isso torna-se passível de erros bastante grosseiros, mas quando consideramos que Lamed é uma letra que aponta para o Céu e para a Terra, isso nos permite uma analogia com a ideia hermética da Lei de Correspondência da Tábua de Esmeralda.
A dualidade de Céu e Terra se apresenta na própria formação desta letra, lembrando que esta é uma análise muito mais hermética que hebraica. Essa observação nos permite concluir algumas coisas pontuais, como a percepção de que o vigia na torre está apontado para o lado celeste e que, desta forma, estará livre dos erros humanos. O reequilíbrio desta justiça não é passível de erro.
Alan Morre escreve em Promethea que o caminho 22, o da Justiça, não teria mais este nome. “Aleister Crowley chamava de “ajuste”. Ele disse que o universo não é justo, mas é preciso. É precisamente ajustado e equilibrado”. Essa ideia de “ajustamento” é muito mais condizente com a percepção que podemos ter deste arcano maior: a Justiça aqui expressa não é a Justiça dos homens, mas a Justiça do próprio Criador e, justamente por isso, nos é completamente incompreensível.
[BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TRECHO]
Em primeiro lugar, ‘sim, estou escrevendo um curso de Tarot’ – e que fará parte de alguns projetos maiores que tenho atualmente (o que explica minha ausência em alguns lugares por aí). Este é o início da aula sobre o arcano da Justiça e devo dizer que foi (até agora) uma das mais desafiadoras por conta do significado da letra hebraica correspondente.
Lamed significa ‘aguilhão’, uma vara com ponta perfurante usada para tanger bois, dando uma “aguilhada”. Esta palavra estranha vem do aculeus latino, uma soma do sufixo acus (agulha/ponta) com o sufixo diminutivo -uleus, formando, assim, a ideia de um “pequeno espinho”, uma “pequena ponta”. Mas não para por aí essa brincadeira, pois há uma possível origem do aculeus no koiné ἀκή (akḗ), que carrega não só um significado de “ponta aguda”, mas de uma “dor aguda”.
A raiz grega ἀκ- (afiado, pontiagudo) se apresenta também em palavras como ἀκμή (akmḗ), que significa “ápice” ou “ponto culminante” – e que curiosamente influenciou o uso de palavras como “auge” no português (que deriva do latim augere, mas se usa com o significado de ἀκμή) e “acme” (ponto mais intenso de uma febre). Há, inclusive, todo um movimento literário russo conhecido como “acmeísmo”, mas essa eu deixo para vocês pesquisarem.
Essa palavra grega surge em trechos como o “ἐν τῇ ἀκμῇ τῆς νόσου…” de Hipócrates (“no acme na doença”) e no “τὴν ἀκμὴν τῆς τύχης ἔφθασεν” de Sófocles (“ele alcançou o auge da fortuna”), mas percebam que o aculeus grego surge no “Verba philosophiae aculeos habent” de Sêneca (“as palavras da filosofia têm ferrões”) e nas Cartas de Paulo com a ideia do “aculeus peccati” (“o ferrão do pecado”). Aliás, os jesuítas diriam que “aculeus autem peccati est lex”: “o ferrão do pecado é a Lei”.
Mas para que tanta etimologia apenas para observar um arcano de Tarot?
Lamed, o aguilhão, quando corresponde ao arcano da Justiça implica na punição por não seguir à Lei, mas não nos dá qualquer demonstração de que a Lei possa ser conhecida sem o ferrão. A punição pelos atos recai sobre os injustos e isso não tem qualquer relação com a ideia de que “a justiça pode ser conhecida” – aliás, este é o tema sobre o qual Sócrates discorre no debate contra Polo e Cálicles no diálogo ‘Górgias’.
“κρεῖττόν ἐστι ἀδικεῖσθαι ἢ ἀδικεῖν” (“é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”): essa é uma das mais difíceis percepções sobre o que é a Justiça, na medida em que, por mais que nos seja impossível conhecer o que é a Justiça de fato, nós somos afetados por ela para retornarmos ao nosso devido lugar. O injusto que não sofre punição tem a alma apodrecida, corrompida, e passa a não ter mais salvação, enquanto o injusto repreendido é aquele ferido pelo aguilhão, ferido pelo “ferrão do pecado” de Paulo, que aponta a Lei dos jesuítas.
O “acme da doença” de Hipócrates diria que a partir do ápice febril restam apenas duas alternativas: a cura ou a morte – e não é este mesmo estado ao qual a Justiça nos leva? Este arcano é capaz de nos trazer uma forte punição ou uma forte realocação no mundo, mas mais ainda; é capaz de nos entregar ambos simultaneamente, na medida em que podemos estar sendo justos e injustos em pequenas porções de nossa jornada (e fazemos isso simultaneamente).
No fim, há ainda outras relações que deixarei para a aula (pois este texto já se alonga demais), pois já creio que deixei visível que há um significado muito mais complexo aqui do que permitem as perguntas do “ele me ama?” e do “eu vou ser promovido?” tão repetidas aos tarólogos que não conseguem dar uma boa resposta quando este arcano aparece...