IMAGINÁRIO EM PERPÉTUA CRIAÇÃO

Modernidade Líquida e Astrologia

ou como o modernismo exacerbado afetou até as ciências antigas

Eduardo Berlim

5/12/20253 min read

Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, é conhecido pela criação do conceito de ‘modernidade líquida’: a ideia de que a modernidade trouxe relações menos frequentes e menos duradouras, mas sobretudo menos compromissadas com a própria relação. Em tempos de namoros virtuais, amizades descartáveis e aplicativos de relacionamento IA para gerar conversas, é um tanto difícil discordar das ideias do polonês.

Mas seu pensamento não termina por aí! Para Bauman, pode-se dizer que, nos ‘tempos líquidos’ em que vivemos, ‘tudo escorre’, ‘tudo escapa pelos dedos’; relações, trabalhos e até a nossa própria identidade – é como se aquilo que antes fosse sólido, tornara-se miragem. Essa percepção da mutabilidade insalubre carrega uma perspectiva bastante perceptível à certos estudantes das Artes, mas que sobretudo me parece bastante refletida na Astrologia de nossos tempos.

Astrologia é, por excelência, uma ciência dos tempos antigos. A compreensão plena desta arte só se dá quando conseguimos compreender o funcionamento da ciência de tempos ancestrais, dos quais gosto de destacar a chamada 'Idade Média'. Afirmações modernas, que tendenciam à uma ideia de que os medievos não faziam ciência, é uma percepção Iluminista e pós-Iluminista que não se traduz na realidade plena. É fato notório de que a ciência mudou bastante durante as eras, sendo inegável que a própria ciência Iluminista já não é mais considerada como funcional no período moderno. Nada em ciência segue perfeitamente após cem ou duzentos anos, mas passagens maiores de tempos faz com que a "nova ciência" tente se destacar das antigas versões de si mesma.

Uma diferença notável é que tanto a ciência medieval, quanto a ciência Iluminista, não carregam a natureza de uma “ciência líquida” moderna, entregue aos piores moldes de Bauman. Não viso objetar aqui as ideias mais abobalhadas sobre ciência, mas preciso salientar que em meros cinquenta anos vimos cigarros deixarem de ser heróis para se tornarem vilões, o uso indiscriminado de opioides nos anos noventa, o amianto como material milagroso – e isso sem contarmos as aberrações como o MK-Ultra e o Estudo de Tuskegee. A ciência da modernidade líquida muitas vezes se vende ao “quem paga mais”.

É óbvio que a ciência medieval tem métodos ‘quase pré-históricos’ comparados a metodologia científica de nossa era, só que isso não significa que não haja grave importância aos métodos de uma época que gerou São Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio, Guilherme de Ockham, Averróis, Maimônides e muitos outros. A ciência que deu um corpo final à Astrologia, reunindo suas mais diversas formas através de uma percepção imaginária atemporal, resistiu aos mais variados testes do tempo, mas curiosamente perdeu valor de forma abrupta com a chegada de um século lotado de liquidez.

Na moderna Astrologia vemos os mais fantasiosos espécimes desta era de Bauman, com interpretações e compreensões que se fazem caber independente da coerência. Todos os signos passam a assemelhar-se com seus donos (e suas piores características), como se mutável fosse uma qualidade presente nas doze constelações do relógio astrológico. Sol em Aquário deixa de ser exílio para ser “uma personalidade diferentona e modernosa”, Júpiter em Capricórnio deixa de ser queda para “trazer grande prosperidade com o trabalho duro e constante” e sequer acho digno comentar como um planeta combusto passou a ser “uma conjunção que aproxima sua psiquê da tua essência verdadeira”.

É claro que não é perfeitamente adequado analisar a Casa 06 sobre a ótica dos “escravos que o nativo possui ou virá a possuir”, mas sua adaptação moderna tende muito mais aos “temas que nos escravizam e obrigações sacrificiais” do que ao “como eu organizo o mundo” apontado nos "gibis de astrologia". A mistura de Casas e Signos é uma confusão moderna, pautada pela necessidade de “escorrer e caber” – só para que posteriormente seja jogada fora como qualquer outra relação atual.

Astrologia ocidental é, acima de tudo, uma medição pautada na ciência de toda uma era, que nasceu ao se reunir ciências de muitas eras anteriores. Nunca foi sobre ‘fazer caber’, mas sobre ‘saber interpretar’. A arte celeste foi base para todo um pensamento humano que não deixa de incluir as Ars Generalle e Ars Nova de Raimundo Lúlio, que posteriormente serviram de inspiração à cifra de Trithemius que culminou nas linguagens de programação dos nossos tempos. Se antes a Astrologia era sobre observar o céu, sobre observar os astros celestes, hoje ela se tornou uma intoxicante observação das justificativas de si mesmo para comportamentos tenebrosos e temas que inteligências artificiais de Tinder desenvolvem com base no perfil da candidata a namoradinha.

Só espero que esses tempos não descubram que há outros planetas para culpar além do Sol e outras Casas para além do Ascendente... Ninguém quer ver grosseria justificada com astrologia para quem não é nativo de Áries ou Capricórnio...