IMAGINÁRIO EM PERPÉTUA CRIAÇÃO

Entre Ghibli e a Gólgota

a Via Sacra da alma animada

Eduardo Berlim

6/23/20253 min read

Das “missões auto-impostas” as quais me dediquei nos últimos tempos, certamente uma das mais prazerosas é a de assistir absolutamente todas as obras do Miyazaki (e ouvir tudo do Joe Hisaishi, como consequência). Nem preciso mencionar que é mais uma das tarefas as quais “me sinto atrasado” (e penso em escrever sobre isso, pois creio que mais gente por aqui se sinta assim), mas para esta tarefa específica há uma excelente desculpa

Ver os filmes do Miyazaki sem se dedicar ao ato contemplativo posterior é um crime consigo mesmo.

Os filmes do Studio Ghibli estranhamente (ou não tão estranhamente, para quem se habitou com o que eu entendo por Arte) formam um caminho, uma trilha de ensino tão poderosa que somente tijolos amarelos poderia formar. Por este caminho não podemos correr, não podemos voar; só podemos caminhar lentamente – tão lentamente que parece que carregamos uma Cruz.

Pois é... Eu sinto que há algo tão pesado, silencioso, tão... sentencioso(!), que tudo o que me resta é a percepção de que Miyazaki carrega uma Cruz nas costas em sua Via Sacra pessoal. Há um sagrado tão poderoso, tão absurdamente poderoso(!), que eu chego a ficar impressionado.

Talvez tudo seja um enorme delírio, mas quando vemos Ashitaka ser marcado pela maldição (Princesa Mononoke) não vemos um Cristo ser sentenciado? Ou ao ver a pequena Chihiro (A Viagem de Chihiro) correndo sozinha pelo túnel não temos a solidão de Jesus ao caminhar sozinho carregando sua sentença de morte? Aliás, para quem viu a trajetória da pequena Chihiro (ao som de ‘One Summer Day’) entende muito bem o que significa “caminhar para o vale dos mortos”!

Aliás, a estação da primeira queda não é a infância confrontada da mesma Chihiro? Ou seria a transformação de Sophie (O Castelo Animado) nas mãos da Bruxa das Terras Desoladas? E o encontro de Jesus com Maria não é a memória recuperada de Haku? A chegada de Simão Cirene como auxiliador não é Kalmaji oferecendo trabalho e acolhimento? Ou é o lar inteiro no coração de Calcifer? [E, sim, eu gosto demais de ‘A Viagem de Chihiro’. Me julguem].

Verônica limpa o rosto de Jesus, San limpa o rosto de Ashitaka e Sheeta segura as mãos de Pazu em queda! Não é perceptível que “quem veio trazer a espada” (paráfrase com Matheus 10:34) seja salvo justamente por quem não veio trazê-la?

E como as mulheres de Jerusalém seriam diferentes do conforto de Nausicaã ao Povo do Vale (Nausicaã do Vale do Vento)? E no que difere a terceira queda de um Totoro que desaparece na chuva (Meu Amigo Totoro)? E será que é loucura ver tantos sacrifícios serem pregados na Cruz? É Haku que não é mais um rio, é Ashitaka em meio a floresta, é Nausicaã com os Ohmu, é (e que Deus me perdoe por isso) o sacrifício da inocência presente na pequena Setsuko (Túmulo dos Vagalumes)!

Por sinal, Seita já inicia o filme mostrando a tumba vazia do Cristo ressuscitado...

É óbvio que os elementos de Miyazaki têm forte conexão com o xintoísmo e com o budismo japonês – especialmente no aspecto do animismo –, mas em que momento existe uma separação real dos símbolos que representam o que temos de mais humano? Não falo de religião comparada, mas comparo a obra de Miyazaki com a ideia de ser ‘(...) gentil como o Sol e a Lua, de uma religião universal que só os homens não têm” que “desassossegou” Fernando Pessoa.

Um caminho de dor, uma rota que se recusa a deixar de ser humana. As paisagens de Ghibli respiram Arte, respiram o contato verdadeiro com Deus a cada personagem que sofre, briga e luta para não perder sua essência, para não perder sua alma. Uma alma que cai, perde o nome, perde a memória... e precisa da ajuda de uma criança para lembrar que era um Deus...